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O MINEIRO SOLIDÁRIO
Amigos, já contei o episódio. Certa noite, num sarau de grã-finos, o Otto Lara Resende cheira a bombinha de asma e declara o seguinte: – “o mineiro só é solidário no câncer”. As senhoras presentes entreolharam-se, deliciadas. Os cavalheiros não souberam, de imediato, se aquilo era piada torpe ou fina sociologia. Os mais atilados veriam, ali, uma verdade estadual, inapelável e eterna.
A frase do Otto caiu na boca do povo. Todo o Brasil a repete. O sujeito entra num velório, ou numa farmácia, e ouve alguém cochichar: – “O mineiro só é solidário no câncer”. Há quem diga que a frase são as obras completas do escritor. Seja como for, continua de pé a dúvida: – piada ou verdade?
Dias atrás, outro mineiro, o Waldomiro Autran Dourado, dizia-me que o Otto é um otimista. Fiz espanto: – “Como assim?” E o Autran, ao meu ouvido: – “O mineiro só é solidário na exumação”. Vejam vocês: – o câncer só não basta. É ainda pouco. Há os que sobrevivem. E segundo o autor do admirável A barca dos homens, o mineiro só daria sua solidariedade à ossada, à caveira.
Não sei quem está certo, se o Otto, se o Autran. Só sei que há um mineiro, o Zé Luís Magalhães Lins, do Banco Nacional de Minas Gerais, que é um generoso, um compassivo, um terno, um úmido. O chamado leite da bondade humana pinga ou, por outra, esguicha do Zé Luís. Falei no câncer. Aí é que está: a solidariedade do jovem banqueiro começa na brotoeja.
Temos diante de nós o caso nacional do Garrincha. E, de fato, o povo acompanhou o drama como se fosse um fascículo de Miguel Zevaco. O Mané, que era um manso, uma cambaxirra, tivera a sua primeira indignação terrena. E essa fúria inédita assombrava todo mundo. Por sua vez, o Botafogo é um clube passional. Insultou-se e partiu para a briga, desgrenhado como um Tartarin.
Ora, que espécie de relação, ou interesse, ou que diabo seja, podia ter o Zé Luís com o fato? Mas aí é que está – o Zé Luís vive a distribuir, a mãos ambas, a sua solidariedade gratuita, ininterrupta, automática. Onde quer que haja um problema, ou um aflito, lá aparece a solidariedade de Zé Luís como uma vela acesa. Ele se interessa por tudo e participa de tudo, com uma juvenil, uma militante efusão. Se na China, se no Alasca, uma galinha pula a cerca do vizinho, ele vive apaixonadamente o problema.
Ei-lo a quebrar lanças por Garrincha e pelo Botafogo. Meteu-se no fogo como uma Joana d’Arc. Varava as noites, numa vigília fanática. Domingo e segunda, quando sumiu a última estrela da noite, estava o Zé Luís, em General Severiano, discutindo, aconselhando, com um élan de herói de Walter Scott. Fisicamente, é um alto, um pálido. E o cansaço dava-lhe um certo halo de martírio.
O Zé Luís sabia que Garrincha nos pertence e que não poderíamos perder Garrincha. Se o Mané deixasse o futebol, choraríamos a sua ausência com uma dor de viúva siciliana. E o jovem banqueiro, com seu ar de aluno de Pedro II, lutou furiosamente. O dinheiro não o desumanizou, e pelo contrário: – ele é que humaniza o dinheiro. Ganhou, por fim, a batalha. Garrincha não podia perder o Botafogo, nem este podia perder o Mané. O Zé Luís repôs um nos braços do outro.
(O Globo, 27/3/1963)