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Mas não o produziu sozinho. Parte do dinheiro foi levantada por Joffre, com o aval de Nelson, junto ao Banco Nacional de José Luiz de Magalhães Lins. O próprio Jece dirigiu “Bonitinha, mas ordinária” em parceria com J. P. de Carvalho, e deixou que este assinasse sozinho. O nome de Otto Lara Resende também foi eliminado, com que por encanto, do título. Mas não da história e nem dos diálogos. E, como o filme foi levado no Brasil inteiro, Otto, por onde quer que passasse, tinha de mostrar a carteira de identidade para provar que existia, que não era apenas um personagem da imaginação de Nelson Rodrigues.
“Bonitinha, mas ordinária“ no cinema foi visto por dois milhões de espectadores – o que permite calcular as multidões que abordaram Otto na rua, o apalparam e farejaram. O filme rendeu muito dinheiro, mas não para Joffre. Desta vez foi ele que vendeu sua parte para Jece Valadão, pagou o banco e foi para a Itália estudar cinema. Voltou em 1964, disposto a tornar-se o Franco Cristaldi ou o Carlo Ponti brasileiro – o produtor que iria fazer as pazes do cinema “de arte” com a bilheteria. Sua primeira idéia era filmar “Senhora dos afogados” com direção de Glauber Rocha. Grande idéia. Levantou o dinheiro com José Luiz de Magalhães Lins e foi à luta.
Glauber, ainda fumegante pelo explosivo sucesso de “Deus e o diabo na terra do sol”, aceitou na hora. Assinou o contrato e, bem ao seu estilo, só depois é que foi ler a peça. E, ao ler, sentiu que não era o material para ele.
“Joffre, me perdoe, mas me libere”, disse Glauber. “Vai dar um choque de autores. Seu pai é autor e eu também sou. Não dará certo.”
Perdida a chance de se fazer o melhor filme brasileiro de todos os tempos, Joffre viu-se com uma idéia na cabeça e o dinheiro na mão, mas sem um diretor para realizá-la. “Pegue Leon Hirszman ou Eduardo Coutinho”, soprou-lhe Luís Carlos Barreto. Num encontro casual com Joffre no “Far-West”, um botequim defronte à TV Rio, Fernando Tôrres e Sérgio Britto falaram-lhe do seu desejo de fazer Nelson no cinema. Só que a peça que preferiam era “A falecida”. E então acertou-se tudo. Leon Hirszman seria o diretor, Eduardo Coutinho o roteirista e Fernanda Montenegro – quem mais? – seria Zulmira, a mulher que não tem onde cair morta, mas que sonha com um caixão de luxo.
O filme ganhou o inevitável prêmio em festival, mas foi um fiasco comercial de dimensões cataclísmicas. E olhe que Fernanda Montenegro realizou em “A falecida” aquela que ainda hoje é considerada a maior interpretação feminina do cinema brasileiro. Seu desempenho enganou até os figurantes na seqüência do velório, rodada na casa de uma senhora portuguesa no Estácio.
Chico de Assis, do “Teatro de Arena”, havia preparado os vizinhos da portuguesa: convenceu-os de que iriam assistir a um velório de verdade, com uma morta de carne e osso no caixão, e conclamou todo mundo a ir ver a defunta. O rosto de Fernanda Montenegro ainda não era tão conhecido na Zona Norte do Rio. Durante horas, dezenas de pessoas desfilaram diante do caixão em que ela se deitava, imóvel, de olhos fechados, fazendo força para não respirar entre aqueles círios, cruzes e flores. Ninguém parecia ver nada de anormal na pre-
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“… mal. O fiel da discussão era Mário Filho: quando os ânimos esquentavam, ele fazia um gesto como quem pede a palavra, levava o “Ouro de Cuba” à boca e os irmãos ficavam mudos e paralisados, esperando a baforada que antecederia a palavra mais sábia e esclarecedora. Mário Filho usava o charuto como uma arma de oratória. E, quando falava, sempre de maneira equilibrada, os outros sossegavam.
Mas Nelsinho não estava sossegado. Era quase impossível ser jovem sem se sentir lesado naqueles anos pós-1964 – toda a sua geração fora excluída da vida política nacional, como se faz como um siso incômodo. No caso, muitos sisos. Não que ele quisesse envolver-se em política, apenas não queria ser proibido de se envolver. E, entre o pessoal das ciências exatas, a Faculdade de Engenharia era das mais inquietas do movimento estudantil. Em 1968, no último ano do curso, ele participara de algumas passeatas e fora dos poucos a não se surpreender com a “Confissão” de seu pai sobre Wladimir Palmeira.
“Wladimir é autêntico, não está brincando”, dizia-lhe Nelson.
Em 1969, com os todos os canais políticos já fechados pelo AI-5, os estudantes desmantelados e um cheiro de pólvora no ar, Nelsinho passou de março a setembro fora do Brasil. Viajara com sua turma da Engenharia para um longo périplo de aperfeiçoamento técnico na Europa. Estivera em 21 países, entre os quais vários do Leste europeu: URSS, Polônia, Tcheco-Eslováquia e Hungria. De lá, ouvia notícias vagas do Brasil: Costa e Silva sofrera uma trombose, fora substituído por uma junta militar, o embaixador americano havia sido seqüestrado, o novo presidente seria um general chamado Médici. Voltou poucos dias antes da posse de Médici. O pau estava comendo e já havia diversos grupos clandestinos atuando na luta armada contra o regime. Aos 24 anos, Nelsinho sentia-se incomodado por “ser tão convicto e não estar dentro da luta”. Disse isso a Nelson, que apenas aconselhou-o a ficar longe “daquela loucura.”
“Guerrilha urbana não é batalha de confete”, brincou Nelson.
Nelsinho não era o único a estar voltando para a casa de sua mãe, que agora morava na Tijuca. Joffre também estava de volta, depois de dois anos nos Estados Unidos: pegara dinheiro com José Luiz de Magalhães Lins e abrira um restaurante ali perto, na rua Uruguai, chamado “Cartum”. Em pouco tempo Joffre observou uma movimentação diferente no apartamento – eram muitos os amigos “estranhos” de Nelsinho que entravam e saíam. Um ou dois já não saíam, pareciam estar ficando de vez. Joffre farejou a formação de um “aparelho” e se queixou com Nelsinho. Tiveram uma discussão, Joffre queria que ele mandasse todo mundo embora. Nelsinho respondeu que não faria isso, Joffre ameaçou:
“Se não sumirem, denuncio todo mundo.”
Nelsinho olhou-o nos olhos:
“Se fizer isso, dou-lhe um tiro na boca.”
Mas não houve denúncia, nem tiro. Nelsinho saiu de casa e alugou um apartamento no subúrbio de Lins de Vasconcelos. Sua mãe comprou-lhe um sofá …”