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“Anteontem, pela manhã, me chamam ao telefone. Era o Otto Lara Resende (sempre este homem fatal!). Ele pergunta:
-“Vamos almoçar com o Poder Econômico?”. Fui sucinto: – “Topo!”. O assim chamado “Poder Econômico” era o Zé Luís, do Banco Nacional de Minas Gerais. Eu conheço de três ou quatro apertos de mão. Mas o bom do Zé Luís está no riso e repito: – é o riso que o promove, que o define, que o consagra.
O sujeito que o vê rindo confia nele, para sempre. Amigos, se o brasileiro é a flor de três raças tristes então o Zé Luís é uma escandalosa, uma ululante exceção. Mas, na hora combinada, lá fomos, eu e o Otto, para o almoço. Para nós (somos dois Raskolnikovs de galinheiro) qualquer banco é um sombrio antro de milhões. Somos uns ressentidos contra o dinheiro. Mas ninguém mais terno, ninguém mais passarinho que o Zé Luís.
Entramos. Elevador. O Otto, de passagem, era um perdulário do cumprimento. Esbanjava cordialidade. Nunca um só cumprimentou tantos. Chegamos ao andar do Zé Luís. O Otto ia repetindo como o corvo de Edgar Allan Poe: – “O Poder Econômico! O Poder Econômico!”. Mas antes de chegarmos até ele, tivemos de atravessar uma sala, mais outra, ainda outra, e uma quarta, uma quinta, uma sexta. E, por fim instalou-se em mim uma obsessão de portas, de mesas, de tapetes e de espelhos.
Eis a verdade: – aquele almoço com o Poder Econômico era, em mim e no Otto, uma secreta, uma envergonhada, culposa vaidade. Entramos numa vigésima sala. E, de repente, abre-se uma porta e aparece alguém. Era o Poder Econômico, …”
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“…era o Zé Luís. E ria para nós. Se eu jamais o tivesse visto, concluiria, imediatamente: – “Esse camarada é um bom!”. Amigos, só acredito na bondade que ri. A virtude de cara amarrada é neurótica. Só concebo santos jucundos. Uma Joana D’Arc ou um São Francisco de Assis haviam de ser risonhos como um Frade de Walter Scott.
E aquele novo encontro com o riso do Zé Luís fez-nos um bem imenso. Ocupamos a pequena mesa. Todavia, uma amarga desilusão nos esperava: – o meu seria escasso demais para a nossa fome. O brasileiro médio, sem Poder Econômico, tem um apetite meio obsceno, que pede mais abundância que qualidade. Eu e Otto teríamos optado por uma dessas feijoadas totais. Mas veio lá um sóbrio milanesa com um purê e mais uma salada modesta. Sim, aquele prato único não era o mata-fome que pediríamos.
E, então, eu enquanto comia, olhava de esguelha para o Poder Econômico. Diante de nós estava todo um Brasil novo.
O Zé Luís dá uma sensação de ginasiano, de aluno do Pedro II sem uniforme. E vejam vocês: – no Império e, mesmo, na Republica Velha, o Poder era uma paisagem de velhices ilustres, mas trôpegas. As múmias dominavam. E, agora, irrompem os ginasianos por toda parte. Em vez de tomar carona de bonde, como outrora, eles fazem historia. São os zé Luís que varrem o Brasil de ponta a ponta, com largo sopro criador.
Bom. No meio do almoço, o Zé Luís vira-se para mim e anuncia, de olho rútilo: – “Sabe quem vem aí? O Garrincha!”. Até o Otto, que nunca viu uma bola e jamais entrou no Maracanã, até o Otto, repito, tem veneração pelo Mané. Eu disse “no meio do almoço”. Já estávamos na sobremesa, aliás bem medíocre. O Zé Luís insistia: – “O Garrincha está chegando. Espera o Garrincha!”. Eu compreendi o élan do nosso Poder Econômico. E, de fato, só o mau-caráter é que não dá uma enorme importância nacional ao Mané. Hoje Garrincha é tão relíquia da pátria como um quepe, como uma espada da Guerra do Paraguai.
Eu e o Otto ficamos. Por fim, apareceu Garrincha. Foi um quadro de Pedro Américo o aperto de mão do Zé Luís e de Garrincha. Estavam lá, também, o Zagalo e o Sandro Moreyra. O Zé Luís é o banqueiro de todos. E o Sandro me puxa para um canto e sussurra: – “O Garrincha gostou pra burro do Zé …”
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“… Luís!”. De fato, sentia-se entre dois um deslumbramento recíproco. O Mané não tirava do banqueiro seu doce olhar de cotia. Eram ligados por uma intensa, cálida fraternidade. E o Zé Luís trata o dinheiro do Garrincha com uma sôfrega, uma angustiosa ternura. O Otto fala ao meu ouvido: – “O Zé Luís também é Garrincha!”.
Por fim, saímos todos. Cá embaixo o Mané pára uma momento e fala para o Sandro Moreyra: “Pergunta ao Zé Luís se quer fazer um banco amigo”. Ninguém achou graça e cada um seguiu o seu caminho.”